Hoje em dia, com tanta preocupação em acompanhar as atualidades em nosso mundo, não deve ser muito surpreendente que percamos muitas conexões com o passado também por causa disso. Quando tudo se torna produto, a questão se resume em dinheiro e, como diz o bem conhecido ditado, “tempo é dinheiro”. O processo de tornar-se consumista da sociedade, então, se preocupa com o lançamento rápido das coisas, e não com as próprias propriedades delas, contanto que vendam. Os valores culturais e históricos dos produtos são utilizados ora muito, ora pouco, mas sempre com fins lucrativos. É por isso que eu estou olhando uma garrafa de álcool etílico de marca “Zumbi”.
Abaixo da palavra “Zumbi”, tem um desenho de um negro, com jóias que eu identifico facilmente como símbolos da cultura africana. Não sei quase nada sobre as culturas tradicionais africanas, mas esta imagem é bem clara para mim. A única outra referência à marca é um desenho de uma lança e uma caixa com o telefone do atendimento ao consumidor a empresa. Então quem é este Zumbi?
A resposta mais comum teria a ver com o líder legendário do quilombo de Palmares, mas a história é ainda mais profunda. Segundo o livro Made in Africa, de Luís da Câmara Cascudo, o Zumbi veio ao Brasil (e a toda parte das Américas) com os escravos angolanos. Embora começasse como nome de Deus (“N’Zambi”) entre alguns povos africanos, no outro lado do mar, referiria à “gente que morreu; alma do outro mundo” e o “espectro que vagava alta noite pelas ruas”. Este fato deve fazer nos lembrar outro tal imortal, o “zombie” dos filmes de terror e da imaginação popular americana. As semelhanças não são nenhuma coincidência – inclusive nos espíritos de vudu haitiano, os atores principais do filme americano “Dawn of the Dead”, o próprio Zumbi dos Palmares, o conjunto musical Nação Zumbi e minha garrafa de álcool têm raiz nos escravos que chegaram quase 500 anos atrás.
Então, devemos parar de usar este palavra assim, bem fora do contexto original? Claro que não. Já tem bastantes expressões com raízes infelizes que se usam no cotidiano: restaurantes com nome “quilombo” e piadas que minha mãe hospedeira faz sobre a “senzala” em que eu durmo. Podemos dizer que é certamente inapropriado? Também não. Apenas podemos procurar as fundações do nosso cotidiano para melhor entendermos as estruturas de poder que explicam as realidades da vida atual. Sei lá porquê se usa “Zumbi” para vender álcool, mas sei que não são os escravos angolanos que ganham por esse uso.
Referência bibliográfica:
Cascudo, Luís da Câmara. Made in Africa. São Paulo: Global, 2002.
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Um comentário:
Você pergunta se “podemos dizer que é certamente inapropriado” o uso de palavras ou imagens que refere aos movimentos de escravos para a liberdade, não? Eu acho que não concordo com a sua conclusão, ainda que eu veja o que você quer dizer. Vou dar um exemplo dos Estados Unidos. Veja o exemplo da imagem de “Aunt Jemima,” um produto de xarope para panquecas, o qual é muito usado nos Estados. É uma imagem clássica da figura que a gente chama a “Mammy,” uma palavra especificamente usada para a escrava que ficava em casa cuidando dos filhos do patrão. Ela foi uma personagem do teatro “black face” em que escravos foram, na minha opinião, cruelmente imitados por atores brancos com cara pintada. Eu acho, pessoalmente, que é certamente inapropriado usar este imagem para a venda dum produto. No caso da garrafa de álcool com a cara de Zumbi, é um pouquinho diferente. O bom é que eles estão usando uma imagem forte do “escravo liberado,” mas para a venda de que? Para quem? Para o branco, rico que procura tomar uma dose de vez em quando? Acho que não. O uso destas imagens é uma questão muito sensível, e algo que faz parte do racismo diário do que a gente geralmente nem se da conta. Este é o racismo mais perigoso na minha opinião.
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