segunda-feira, 2 de junho de 2008

As Portas da Percepção

“Vocês têm que se acostumar com o fato de que a maioria das famílias com as quais vocês vão morar são brancas, e que essas famílias vão ter uma empregada que é negra,” falou o diretor do nosso programa quando chegamos aqui em Salvador.
“É mesmo?” perguntou Aristóteles do fundo da sala.
“Você veio de onde? Eu achava que você não voltaria mais, sobretudo depois da vergonha que você tem causado nos últimos quatro centos anos aqui. Vá embora, vá!” o diretor gritou para Aristóteles.
“Se você e o resto da sociedade aqui no Brasil quiserem ir reproduzindo toda a bobagem que eu produzi faz mais que dois mil anos, fiquem a vontade. Mas todo o mundo já sabe que o fundamento teórico de meus ensaios sobre a escravidão é bem fraco, e todas as teorias das ciências físicas, naturais, e sociais já arrasaram a besteira que eu usei para justificar a escravidão e o uso de empregados no lar doméstico. Agora a gente sabe que não existe uma raça ou um tipo de pessoa que é melhor que as outras para a mão-de-obra física, mas que a sociedade vai criando e recriando o tipo de corpo que é usado para as tarefas manuais. A gente também não aceita mais a idéia de um sistema que usa a cor da pele como maneira de diferenciar as pessoas. Porém, parece que você quer ensinar esses estudantes que esses erros não têm nada demais, então vá-la!” E aí, ele desapareceu.
“Desculpe, gente, eu estava dizendo o quê?
De repente, Immanuel Kant apareceu na porta.
“Quem convidou você?” o diretor perguntou.
“A luta dos últimos quatro mil anos dos escravos, dos explorados, e dos oprimidos me convidaram. Aqui no Brasil, vocês estão continuando a criar esses grupos de pessoas da pior maneira possível. Vocês não entendem o princípio mais básico da organização dos seres humanos. É o princípio que deve ser encontrado no centro de toda relação pessoal, e que deve governar a sociedade. Esse princípio diz que os humanos nunca podem ser os meios para um fim. Ou seja, não se pode usar os humanos só com a intenção de aumentar os lucros, eficiência, ou mesmo a felicidade de um outro humano. Em lugar disso, os humanos são os fins mesmos de uma ação. A relação de duas pessoas leva em conta a humanidade de cada pessoa, a qual exige um direito universal de ser considerada a última meta em todo negócio.”
“Desculpe, amigo, pode fechar a porta aí?” pediu o diretor. “Tem um vento particularmente forte hoje.”
Contudo, antes de ele poder começar a falar de novo, Karl Marx entrou pela janela e virou-se para a gente.
“Oi pessoal,” ele começou. “Eu tenho passado os últimos quinhentos anos observando as relações humanas dentro do Brasil. Que desordem! A maior parte das famílias aqui de classe media tem uma empregada. Essa empregada tem que viajar todo dia do bairro dela para um bairro no centro da cidade, e essa viagem é normalmente muito longa. Na casa do empregador, ela tem um papel bem desfavorável. Ela cozinha, mas do jeito que a dona da casa quiser. É a mesma coisa com a limpeza e com as outras tarefas na casa. Todo o trabalho que ela faz é para o empregador e não faz nenhuma diferença na vida dela a não ser pela satisfação do empregador. Além disso, ela trabalha num lugar desvinculado de todas as pessoas na comunidade dela. Portanto, qual é o resultado de todas essas circunstancias? A empregada fica alienada da comunidade dela, o trabalho dela, e finalmente de si mesma. Por isso, esse sistema faz com que todos os donos de capital tirem a humanidade da força de trabalho e alienem eles de todo aspecto da vida delas. Para os trabalhadores ganharem a humanidade deles de novo, eles têm que conseguir propriedade sobre o próprio trabalho deles.”
“Karl, você é tão chato. Gente, eu...” o diretor começou de novo. Mas eu não estava escutando. Eu estava indo buscar acarajé com Karl, Immanuel, e Aristóteles e escutando eles enquanto eu pensava mais sobre o choque de cultura que me esperava todo dia na porta da casa da minha família de classe média alta.

Um comentário:

Katie disse...

Querido Kyle,
Você é um génio.

beijos!
Katie

mas em sério, a situação da empregada doméstica é uma coisa à qual eu nunca vou me acostumar, e nem quero!
Ainda bem que você sente tão decepcionado quanto a desigualdade e injustiça que enfrente em casa todos os dias! Essa é a única maneira em que os problemas da sociedade possam ser esclarecidos e resolvidos!
Mesmo que você não seja brasileiro, o fato de que você sente incomodado pode ter um efeito nos outros.